quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

A Velha


Morava ali mesmo, debaixo do viaduto. Durante anos. Era uma família: dois vira-latas de tamanho médio pra grande, brancos com tons de amarelo claro, e um beagle. Dormiam juntos; nas manhãs iam até a padaria, mas eles ficavam na porta, obedientes, educados, reverentes a quem lhes dava abrigo, alimento e carinho: coisas que ela não tinha de ninguém. Nas noites enrolava-se em retalhos plásticos grandes, eram suas paredes, suas cobertas, finas defesas.

Como ela sobrevive assim? Perguntei tantas vezes. Que força é essa?

Têm-se uma gripe um pouco mais forte já pensamos em não levantar da cama, o corpo todo dói, um mal-estar quase insuportável nos aprisiona em laços febris. Qualquer dorzinha nos afeta. Como ela suporta? Assim! Sentada no chão de concreto duro, que ferve nos dias quentes e congela nos frios?, a poeira suja do chão e do ar carregada por ventos constantes entranhando em seus poros, sua pele.

Nunca me aproximei dela fisicamente a não ser nas vezes que, por acaso, íamos à padaria no mesmo momento. Eram ocasiões raras; olhando-a de perto assim surgiram imagens de personagens de Grimm ou de Lobato, uma inevitabilidade; os cabelos grisalhos desalinhados, vastos, volumosos, andrajos imundos, a pele encardida, e, principalmente, o rosto. Olhos grandes claros esverdeados, destemidos, com linhas vermelhas minúsculas que, em quantidade dava-lhe um tom cansado, insone, cercados de pele curtida muito sulcada, engelhada, sobre um narigão de narinas abertas, curvo com verrugas, duas. A boca grande e sinuosa com lábios rachados, secos, que, caídos nas extremidades faziam-lhe um ar de profundo desgosto. A sujeira das mãos começava embaixo das unhas grandes - largas quebradas e facetadas, serrilhada nas pontas - e subia por dedos taludos, mãos e braços acima, entre artérias salientes e rugas proeminentes. O pescoço revelava sua força física, era grosso, com muita pelanca e sujeira decerto, mas com largura e diâmetro. Os pés, ái! Os pés! Confesso que eram terríveis!, assim como garras de águia, mas por não olhá-los muito não me ficou um bom registro. Sua cintura ampla e seus movimentos ligeiros eram sinais de sua estrutura sólida.

Várias vezes pensei em levar-lhe alimento ou abrigo, um cobertor, uma palavra de conforto, algo que lhe aquecesse a alma. Mas depois de certa manhã dentro da padaria em que, não sei bem o motivo, mostrou-se subitamente enlouquecida, esbravejando com alguém invisível, berros horrendos! Pessoas se afastaram. Palavras ininteligíveis, gestos agressivos, em fúria, como se atacasse ..., pobre alma atormentada, doente mental. Por isso tão solitária, todos a temiam, ninguém se aproximava para conter-lhe os ímpetos, antes deixavam que se espraiassem. Não a vi clamando contra seus amigos caninos, com aqueles nunca se aborrecia. Talvez aquela fosse sua muralha, a cerca pressentível com a qual limitava seu espaço.

Em algumas madrugadas sem sono ouvi-a bradando, gritos roucos quebrando o silencio daquelas horas calmas, provavelmente reagindo a alguma brincadeira de mau-gosto, provocações covardes de adolescentes infantis, perversos. Talvez espantando as visões, seres atacantes invisíveis.

Da janela do banheiro via-se a velha mulher sentada diariamente na calçada recostada a uma árvore no meio do vai-e-vem de tantas pessoas e veículos ao redor. Os companheiros dormindo próximos às suas pernas estendidas, um pé sobre o outro. Contemplava em silêncio a vida movimentada a sua volta.

Não possuía nenhum objeto alem de um plástico engorovinhado que um dia fora sacola, contendo retalhos dobrados de pano e outros de plástico. Nada alem disso e sua mente indecifrável, posto que não se encontrava por ali na praça, mas em seus pensamentos insondáveis, regiões que só a ela pertenciam; antes, era lá que estava. Recolhida em seu canto, inexpugnável.

Em vários momentos de dor ou desânimo, por uma gripe mais extensa ou um não saber como pagar algumas contas, certas coisas que me deixam pra baixo, parente doente, crises existenciais, bastava para dissipá-los - recolocando-os em seus verdadeiros espaços numa hierarquia de importâncias - sua presença imbatível, ou melhor, a lembrança dela ali tão perto, em seu mundo sem ninguém. Muito me admirava sua resistência física às intempéries solitárias.

Como ela consegue? Perguntei muitas vezes, principalmente nos períodos de frio e chuva prolongados.

À noite, deitado em minha cama cheio de agasalhos e paredes, sobre um colchão macio e quente, aconchegante, com lençóis limpos, barriga cheia, remédios na gaveta ao lado, mesmo assim preocupado em não resfriar; imaginava-a ali, duzentos metros abaixo ao lado, ao relento, contando apenas com o viaduto e os plásticos nos quais se enrolava. O vento e a chuva correndo pelas paredes do prédio.

Saberá sua identidade?

Quem terá sido um dia? De onde veio? Aonde nasceu? Qual será sua história? Já foi jovem - evidente -, era bonita, educada, teve família e filhos, ou não? Sempre foi assim? Não. Uma história há de ter. Alguém saberia dizer?

Será ex-alguma-coisa?

Na semana passada dei por sua falta. Hoje sei que não tornarei a vê-la. A praça está diferente. Seus ensinamentos carregarei comigo; deu-os sem levar nada em troca além de minhas observações. As perguntas permanecerão até que eu as esqueça.

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