domingo, 25 de janeiro de 2009

O Velho da Perna Fosforescente 2


obs: comece a leitura pelo capítulo anterior, o 1.

Levanto e caminho na direção das árvores do parque, pensando na pirua e seu pé desnudo com as unhas pintadas de sangue seco. Me aproximo de uma árvore grande, abro a braguilha e urino nas plantas em volta das raízes que se projetam do tronco grosso e marrom escuro da árvore. Estou pensativo, que é o mesmo que um oceano de águas transparentes e calmas, que se perde nas profundezas e volta como lulas gigantes atrás de peixes para o almoço.

Divago sobre a vida. Vida dura de policial. Estou neste caso do Velho há tres meses. Até agora só tenho pistas vagas, que se parecem à uma campina turva de mata esguia balançando-se ao vento. Quando penso que estou próximo o vulto se desfaz entre a multidão que, aos borbotões, passa em sentidos opostos pela minha frente.
Estou sentado na calçada junto a outros moradores de rua. Fui bem alimentado à noite pela ong das senhoras simpáticas.

Certa noite, enquanto dormia um pouco, entre a ong do cobertor e a das quentinhas, acordei com o ruído claro de gemidos de prazer. O amor de uma das voluntárias extrapolou o limite da caridade espiritual e alimentar, penetrando no reino dos sentidos físicos, os ditos carnais. Pelo que se ouviu foram varias vezes.

***

Ontem pela manhã um garoto surgiu e disse: "Sei onde está o velho que você procura." Meu coração disparou e senti meu corpo se alongando e o ceu escurecendo com pesadas nuvens de chuva que se aproximavam. Leve-me até ele, disse ao garoto. "Só se molhar a mão, doutô." Moleque com olhar destemido com boca grande beiçuda, sobrancelhas duras. Toma, vermezinho imprestável, resmunguei e dei o dinheiro ao garoto.

Subimos a Rio Claro, descemos a Lemam e dobramos na Corrientes, descemos a Ataualpa e adentramos pelo Morro do Pastel.


Eu sabia! O Morro do Pastel!

Por razões desconhecidas enquanto comia pastel na tarde do dia anterior, o reflexo efêmero do sol na borda limpíssima de um veículo imponente, preto, brilhante fez gemer o espírito audaz que dorme no interior de reconditos escuros da alma, qual potros galopando na ravina verdejante. Através dele vi um vulto, com um volume às costas, mancando com a perna direita. Com a direita? Ah! Claro! a direita é a esquerda, porra! evidente! cérebro atento! imagem refletida.

Naquele momento tive a intuição: num relance um flash veio-me à mente, e vizualizei o Velho no Morro do Pastel, pois eu comia um de queijo, maravilhoso, de dar água na boca.

O menino de short descalço camiseta do candidato a prefeito apontou uma casa trezentos metros adiante. "É aquela." ... continua

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Autoconhecimento


Procuro por mim mesmo.

Onde me encontro?

percorro todos shoppings,

em nenhum deles estou,

vou à todas igrejas,

lá não me acho.


Percorro feiras,

livres ou cobertas,

de todo tipo de coisas,

vou a todos mercados,

procuro no google,

pesquiso na internet.


Tão pouco quero,

e tampouco encontro.


Coisa simples,

nada demais,

mas nem desse pouco,

me sinto capaz.


Quem sou?

É muito, querer me conhecer?

Saber quem sou.


Estive em muitos lugares,

milhares de livros li.

cruzei oceanos,

morri,

renasci.

No entanto,

em nenhum desses momentos

me conheci.


Andei a torto e à direita,

à esquerda também,

já olhei em cada greta,

subi acima das nuvens,

mas nunca me vi como alguém.


Alguém capaz de exprimir tudo que sente,

de dizer tudo que não sabe,

de fazer tudo que quer,

de ser meu próprio rei,

não sendo uma coisa qualquer.

De ser somente eu.


Alguém assim, eu sei,

é difícil encontrar,

mas mesmo sabendo disso

não desisto.


Me busco nas florestas mais densas,

no fundo dos oceanos,

no interior da terra,

nos confins do universo.


Já entrei em buracos negros,

e deles nunca mais saí,

mas mesmo não saindo,

agora não estou mais ali.


Será isso então?

Só existo na minha imaginação?


Quando parar de pensar desaparecerei.

Nunca terei existido,

jamais me reencontrarei.

Talvez seja achado na calçada,

de uma esquina movimentada

dentro de um saco de papel,

e então encaminhado,

entregue na seção de achados e perdidos

de um supermercado.


Ali estou?

Talvez ali.


Pode ser, no entanto,

que não seja este meu destino,

posso ir pro depósito de lixo.

Lixo atômico.

Altamente mortífero.

Por séculos ainda estarei

poluindo o solo, água e ar.

Lixo radioativo.

Mata todo ser vivo.


Serei eu ali?

Pergunto a mim mesmo,

sujeito que nunca vi.



quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

O Segredo da Serpente


Uma fábula transgressora


Oi gente, sou a serpente. Isso mesmo, a serpente, aquela do paraíso. O paraíso é muito lindo! Como é bom viver aqui, eternamente. Não sentimos fome, nem frio, nem sede. Tudo aqui é perfeitamente perfeito.

Somos uma grande família, todos vivemos juntos, os outros seres e eu, é, isso mesmo, aqui está repleto de seres. Não tem sol nem lua, nem nuvens nem vento, aqui é o paraíso, onde tudo é divino. Na verdade eu não devia, mas vou lhes revelar um segredo.

Mas prestem bem atenção!

Caso não queiram escutá-lo,

parem agora mesmo!

Ou será tarde demais...

Em primeiro lugar está o todo-poderoso, foi tudo idéia dele, digo, a criação de tudo, do Universo. Ele manda, e é bom obedecer. Mas vocês querem mesmo saber? Algumas coisas são assim, como eu poderia dizer..., um pouco diferentes. Os seres, embora pareçam iguais em termos de inteligência, na verdade não são. Não contem isso para ninguém, ou nem sei o que poderia acontecer comigo, deus me livre!

Vivemos todos em perfeita harmonia. Leões e zebras dormem lado a lado; águias e ratos conversam animadamente; até os peixes aparecem para brincar e saber das novidades, que por aqui também há. Porem existe um ser estranho (ser humano), que vive muito só, anda desanimado, parece desassossegado, talvez por não estar acompanhado.

Ontem à noite, enquanto todos dormiam, presenciei um ato de puro amor. Nosso chefe, o todo-poderoso, ficou dele apiedado e dois anjos enviou, muito habilidosos, que lhe retiraram uma costela e dela fizeram seu par!

Adão (este é o nome do tal ser) então acordou, e não podia acreditar! Ali, bem a seu lado, uma mulher dormia! Ela também acordou assustada, mas logo os tranqüilizei, e lhes expliquei o fato ocorrido. Eva é seu nome, e, devo admitir, uma beleza de fêmea!

Porém, algum tempo depois, um dia ou dois, escutei um assobio. Rastejei até o muro, e, do lado de fora o anjo caído me chamava, é, aquele mesmo, com fama de mau; ele então jogou um bilhete com algumas instruções:

– Cara serpente, faça um favor, leve Eva até a árvore e lhe dê uma maçã.

Só isso?

– Porquê?

Perguntei curiosa.

Ele então me revelou baixinho, para que mais ninguém escutasse, que era o fruto proibido!

Ah! pensei, será tão bom assim?

Mas era pedido de anjo, e não podia recusar. Só que, como boa serpente, rastejei novamente e na árvore subi. Tão curiosa fiquei que a maçã eu mesma comi. E então...

Meu deus! Que poder!

Repentinamente pude tudo entender!

Fiquei sapientíssima!

Corri então até o Olimpo, que fica aqui ao lado, chamei a deusa Fama e cochichei ao ouvido: – A mulher de Adão, Eva, comeu a maçã!

Logo, de seu palácio de mil janelas, mil bocas saíram, e, de ouvido em ouvido, ela espalhou o ocorrido.

Num instante a notícia correu por todo o paraíso, e o Criador, ao saber de tal desobediência, não pensou duas vezes, e, sem nenhuma dúvida, os expulsou do paraíso! Foram então os dois lançados num planeta distante, pequeno e desabitado. Lá se estabeleceram e passaram a viver, o que significa que um dia irão morrer; por causa do meu pecado.

Muito amor fizeram sob o céu de estrelas brilhantes e, nas noites de lua cheia dormiam bem abraçados. Nasceram muitos filhos daquele casal apaixonado, tantos que, depois de alguns milênios, o mundinho ficou superlotado.


A história deles continua, mas sinceramente, com tudo que vejo daqui, eles estão indo mal, muito mal. Estão se aniquilando, e a todos os animais, peixes e vegetais. Como são estúpidos estes seres! Bem fez o chefe em despachá-los daqui, pois até hoje os homens não conseguiram entender que, para sobreviver, precisam se unir.


Não digam a ninguém o que lhes contei,

este é nosso segredo, a outros nunca revelei.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

O Velho da Perna Fosforescente 1


Muito se falava no velho da perna fosforescente.

Ninguem sabia, no entanto, dizer onde morava, como encontrá-lo. Uma aura de mistério envolvia sua imagem.
Seria apenas uma lenda?
Uma criatura assim como o lobisomem ou o saci pererê?

Não parecia ser essa a opinião do meu superior, que estava sentado me fitando friamente, com olhos que se sobressaíam pelo centro isométrico no semblante austero do delegado. Caraleos
! O homem tá uma fera.
"Quero saber onde este velho está, quem é e o que carrega na pôrra do saco, entendeu! Gritou na minha cara lançando perdigotos.

Porra de delegado de merda! Vai tratar mal sua mãe seu filho de jumento capado! penso enraivecido enquanto desço as escadas da delegacia.

Quem é o homem idoso que aparece fugaz em lugares sinistros em momentos sinistros, carregando misterioso saco?

Isso é o que pretendo descobrir.

Para tal, conto com algumas informações obtidas durante minhas andanças pelas ruas desta cidade monstruosa. Dizem tê-lo visto passando pelo beco das Garrafas, no sábado à noite. Tambem foi ouvido que aparecera nos fundos do teatro municipal, mas aí, são tres versões diferentes: a da atriz, a do zelador e a do mendigo.
Vamos analisá-las:

A da Atriz:
Dementineva Troyavuska, atriz russa que veio morar nesta cidade sub-tropical depois de se apaixonar por um anão gay, afirma tê-lo visto dobrando a esquina e seguido em direção ao Largo da Misericórdia, carregando uma saca no ombro, com a perna fosforescente brilhando intensamente na escuridão da madrugada enevoada.
Alega que isso ocorreu na sexta-feira passada, quando deixava o teatro acompanhada de seu marido Carlitos - o anão gay. Ele alega não poder confirmar a informação pois, devido a razões de ordem espacial, não conseguia ver muito bem no momento pois estava com a ècharpe que lhe esvoaçou do pescoço e subiu para o ceu, prejudicando sua visão. Mas ouviu um ruído que parecia o de uma perna fosforecendo no escuro. Estes anões... é mole?
Reservadamente espiei na direção da esquina. Naquele momento perguntei a atriz: o que te atraiu no Carlitos? Ora, com quem eu teria tantos homens em minha cama? E por outra, ele é facil de manejar. Essas atrizes... É mole?

A do Zelador:
Raimundo Nonato, cearense de Sobral, trabalha como zelador no teatro há cinco anos. Diz que na noite de sexta-feira, assim que terminou o espetáculo, foi até a esquina da praça tomar uma branquinha. Ao retornar, cruzou com um velho que carregava um estranho saco nas costas e mancava da perna esquerda. O vulto chamou sua atenção pois tinha os olhos cerrados, só deixando à mostra um brilho vermelho, assustador. Perguntei sobre a perna fosforescente. Disse que o enevoado do momento, ou a força da pinga, não sabe ao certo, mais plausível os dois, lhe roubaram este detalhe. Esses zeladores... É mole?

A do Mendigo.
Régis Cardoso do Amaral Pedreira Rolandes, o mendigo, dorme sob a marquise do teatro há 25 anos. Diz que na referida sexta-feira, estava sendo atendido pela ONG SÓ SIAL, que leva quentinhas e agasalhos às 2a, 4a e 6a feiras, na parte da madrugada alta - de 0:00 às 2:00hs - quando uma das mulheres que lhe atendiam comentou com a outra: Olha lá aquele velho querendo pegar nossos necessitados! Veja! A outra mulher parou de massagear as costas de Régis, o mendigo, e respondeu: Não seja mesquinha Zuzu, tem necessitado a dar com pau, não é mesmo?
Diz o mendigo, Regis Rolandes, que neste momento, em que as coroas discutiam, viu o velho com longos cabelos brancos úmidos e desalinhados, carregando um saco às costas com uma perna esquerda enrolada em panos verdes, vermelhos e amarelos. Foi na direção da Igreja de N.Sra dos Remédios. Esses mendigos... É mole? O caminho oposto ao largo da Misericórdia! Pode, uma coisa dessas?

Mas aí surgiu outra pista: Na esquina da rua do Teatro com a Rua dos Porto foi encontrada uma peça misteriosa: Um retrato de Ursula Andrews, no tempo que era a gostosona do cinema, numa moldura de alumínio com fundo de madeira e vidro na frente. O retrato tinha uma dedicatória: "Ao meu amado Juvenildo, meu manquinho gostoso. Beijos nesta carinha de anjo caído. assinado: Ursulla, 1962".

Então! qual é a conclusão? Pois se o Velho da perna fosforescente se chama Juvenildo, o nome não combina com os fatos. Como o velho poderia ser Juvenildo? Não, definitivamente a pista é fraca. Logo concluo; meu cérebro detalhista marcou mais um ponto. Cérebro superdotado. Esses policiais... E mole?

Mais uma vez me vejo nessa situação! Não sei pra onde me dirigir. Penso um pouco, sentado no canteiro da calçada, sobre a grade de tubos metálicos. Estou com uma das mãos na cabeça, pensativo, como na escultura famosa de Rodin. Bosta! De nada valeu a postura do pensador! Não me surgiu ideia nenhuma; a não ser que... Isso! Já sei! nessas horas, em que nos bate aquela sensação de caindo no abismo sem paraquedas, o melhor a se fazer é não fazer nada.

Sentei-me próximo ao mendigo. Não taõ próximo que ele pudesse me ver como concorrente na coleta de esmolas ou que pudesse atrair com minha aparência de policial decadente, falido, a atenção dos voluntários que lhe alimentam, dão roupa, conforto espiritual e fisico, para que ele possa assim, resistir ao sofrimento de ser o que é: um mendigo.

De onde vem a palavra "mendigo"? Seria uma corruptela de Homem Digno? hoMEM DIGnO... Ou ainda Men, digo. Que significaria: Men - em inglês: homens -, digo. Diz o quê? Este caso está cada vez misterioso... as pistas se confundem, parece proposital... Meu estilo policial leva a conclusões lógicas.

Cuspo o chiclete, há muito no lugar de palavras que não saem, até por não saber como se comportar, em que ordem se colocar, chiclete sem gosto, já muito mascado. Ele fica sobre a calçada. Pouco depois uma senhora pirua vestida de oncinha brilhante com mechas azuis no penteado prateado pisa no chiclete que sai e vai agarrado ao escarpin vinho. Isso faz com que a pirua manque um pouco. Seria ela? O velho é um disfarce? Não. É só o chiclete que gruda a sola do sapato ao solo. Mais tres passos e o sapato fica, e o pé da pirua se desnuda. Que cena!

Este velho da perna fosforescente vaga pelas ruas desta cidade monstruosa, violenta e decadente, com um saco indefinido às costas e ninguem sabe seu paradeiro... muito sinistro.

O fato é que depois de tres dias e tres noites ali na marquise do teatro fiquei conhecendo as turmas de voluntários. Os horários aceitos para donativos, alimento ou palavras de conforto, vai de 22:00 às 2:00hs da madrugada. Se não organizarmos, vira bagunça, nem podemos dormir; que, afinal de contas este é o melhor deleite, é o maior requinte de ser morador de rua, dormir sem se preocupar com contas a pagar. Depois disso temos algumas horas de sono, até que chegue o dia e com eles milhares de pessoas que vão e vem, não se sabe pra onde..
... por enquanto é só, continuo em breve.