terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Brilhos do Sol na Lagoa


Certa manhã ensolarada na Lagoa, enquanto remava um dois-sem, adormeci e sonhei.


Não sei exatamente por quanto tempo, talvez alguns segundos, décimos de segundo; de qualquer forma, subitamente adormeci e, de repente, estava de volta ao barco, vendo a popa terminando num ponto em meio aos reflexos dourados do Sol no prateado da superfície fluorescente da Lagoa.

Os barcos tem um desenho em forma de meia calha com as pontas compridas afunilando até se encontrar nos bicos. Numa das pontas, a da frente, há uma proteção de borracha, na outra um pequeno e delicado leme. São como torpedos pela metade deslizando na superfície, cortando a água em velocidade quando bem remados, deixando, nesse caso, uma trilha mais lisa sob o casco formando uma esteira fina de pequeninas borbulhas acompanhadas de um som característico, tipo um chiiuuuuu...que aumenta ou diminui, conforme a ligeireza do deslocamento.

Existe o de um remador com dois remos, é o skiff; de dois remadores, que é o doulble skiff; e de quatro, o four skiff. Já com um remo maior por remador temos o dois com ou sem patrão - que vai meio sentado meio deitado, ditando ritmo e dirigindo o leme - quatro, tambem com ou sem, e o oito que é só oito porque não tem com ou sem, é sempre com, então pra simplificar diz-se: o oito.

Eu, como voga, ficava de frente pra ré do barco, por isso quando dei por mim, foi isto que vi, a popa do barco deixando um rastro reto, liso e limpo, zunindo na superfície da Lagoa Rodrigo de Freitas, com a igreja de Santa Margarida ao fundo; nossos corpos suados indo e vindo no vai-e-vem ritimado das remadas. Em certos momentos a repetição por centenas de vezes do mesmo movimento numa descida de raia acaba por se transformar num mantra físico, com o som líquido das pás dos remos entrando e saindo simultaneamente da água, os rodízios deslizando velozmente nos trilhos sob o assento, uma peça em forma ergonômica amoldada às curvas do traseiro. Os braços se esticando levando o remo a frente, os pulsos rodando e levantando para que a pá, na extremidade do remo, penetre a água, depois as pernas bem flexionadas para pegada da remada com os braços esticados, mãos como garras na pega do remo, empurrando com toda força o tronco firme e ereto para trás, fazendo o barco se deslocar na superfície. Ao final de cada remada, com as pernas já esticadas, os braços agora junto ao abdome, giram os pulsos para que a pá saia da água, e então seja levada novamente a frente, e assim sucessivamente.

Nesse vai-e-vem contínuo, um mantra físico, repetido centenas de vezes, adormeci por uns instantes. e acordei surpreso, pois não sei como remei dormindo, ou sonhando, ou ambos.

O aspecto mais importante a se ter em vista durante o ato de remar é o equilíbrio juntamente com a força e a sincronia perfeita nos movimentos de entrada e saída das pás na água, é o que dá estabilidade ao conjunto, evitando que as pás dos remos toquem ou batam na superfície líquida enquanto fazem o caminho para buscar a remada. Qualquer vacilo desequilibra o barco, fazendo com que as pás arrastem na água e, com isso, perde-se velocidade.

Na lancha, ao nosso lado um pouco atrás, ia o lendário Buck, técnico da equipe de remo do Clube de Regatas do Flamengo e da seleção brasileira. Estávamos treinando para o mundial de juniores, na cidade de Ratzeburg, no noroeste da Alemanha, nos idos de 1974.

Meu parceiro era o Lourenço, José Carlos Vieira Lourenço, pessoa de ótima índole, nos tornamos amigos, inevitável. O convívio diário acaba por aproximar a gente. Passávamos horas treinando pela manhã e à tarde. Lourenço tinha uma voz alagre, confiante, às vezes cantava, e cantava bem, em francês: "fenêtre ouverte, on'ecoutè les bruit des vagues, les vagues sont vert... ", ou então atacava de Frank Sinatra, era um cantor de primeira. Nossos treinos sem a lancha eram ótimos, ficávamos mais relaxados, remando com prazer, sentindo a musculatura arder, respirando fundo ritimadamente, indo e vindo, a esteira de água fervilhando de borbulinhas correndo por trás do leme. Como era bom!

Por conta disto minha juventude não foi de boemia, mas de bom-dia. Todos dias víamos, quando o céu estava limpo, o que é bem comum nas manhãs da Lagoa, o Sol nascer no corte do Cantagalo. À tardinha o víamos se esconder atrás dos Dois irmãos. Em tardes de Lua cheia, ela despontava magnífica, enorme, laranja corrugada, quase indecente num ceu ainda azulado.

Era meio triste ver os rostos amassados e as peles pálidas das pessoas desfiguradas que, no final da noite saíam das boates pelas quais eu passava no caminho, cinco da matina, entre o Leblon e a garagem do Flamengo na Lagoa. Eram pessoas jovens, ou nem tanto, mas de aspecto deplorável, roupas amassadas, maquiagens borradas, alguns vomitavam.

Quanto contraste, pensava eu, no frescor da madrugada com o corpo dormido e a mente calma, me sentindo tão bem comigo mesmo. Não trocava isso por nada neste mundo.

Era meu tesouro.

6 comentários:

  1. Caro Xará,

    Seu empenho atlético começou bem antes do meu. Ou por outra, na primeira juventude não abandonava as quadras. Depois, aí sim, a coisa pegou, e a tal da cachaça fez e desfez.
    Agora, uma coisa é verdade, já coroa, dei de chegar por volta das 6 da matina na Lagoa, caminhar ao seu redor. Não há nada melhor, os problemas parecem que se esquecem da gente. E nessas caminhadas, o pessoal do barco sempre mereceu meu olhar, com uma pitada de inveja e outra de contemplação.
    Abraços,

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  2. Delicioso...não poderia nunca fazer tal coisa.. pois a preguiça é minha irmã, não gêmea, pois minha gêmea não tem preguiça..ficou tudo comigo..hahaha
    Adoro seus contos..continue sempre...
    Beijosssssssssss
    Rê.

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  3. Falou Xará,
    Obrigado pela descrição da caminhada, quem sabe umm dia o passado retorne e me verás remando.
    abraços

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  4. Oi Regina, tenho que concordar, sua irmã e anti-preguiça radical. Eu preciso compensar com muita calma. É zen.
    bjs

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  5. Alexandre,

    Acho que você não me conhece, mas tambem remei no Flamengo, com o Lourenço, para não lembrar o carinhoso apelido que ele ganhou. Mas o motivo de eu lhe escrever é: Onde Está o Lourenço? Você ainda mantém contato com ele?

    Luiz Otavio Palhares

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