sábado, 18 de abril de 2009

O Dono do Casarão



Não sei explicar como fiquei assim. Tenho algumas hipóteses que não mencionarei, pois não desejo interferir em suas conclusões. Mas vou contar agora, enquanto lembro, como foi que aconteceu.

Moro neste velho casarão, há mais de sessenta anos, desde que nasci. Éramos uma grande família, os almoços de domingo sempre um alvoroço. Como era bom estarmos juntos; não tinha consciência disso na época: do quão era especial. Vovô e vovó, duas tias-avós, minha mãe e irmãos, minhas irmãs e eu. Morávamos na casa de meus avós, pois papai, militar, fora combater na 2ªguerra mundial. Quando nasci meus tios eram moços, convivemos por bom tempo, quantas festas... só mais tarde se foram, dois casados e o terceiro preso, estuprador. Tio Rodolfo. A primeira vítima revelada foi Lola, filha da empregada. Risaura, a mãe, ficou muito puta, mas o tio, mentindo até o fim, negou tudo, descarado, mesmo quando a menina chorando descreveu pra família como era seu pau duro, torto para o lado esquerdo, quase num ângulo de sessenta graus, no meio. Negaram-se a aceitar. Um erro. Ninguém pediu pra ver. No fundo já sabiam; a mulher foi embora furibunda, levando a filha deflorada pelo braço. Mesmo jovem pude sentir a gravidade da situação. Meu avô tentou levá-lo ao psicólogo, na época uma novidade, mas ele recusou dizendo que a moça o atiçara, que não era maluco, essas coisas de enrolador. Um ano e meio depois, ao abordar outra menina que voltava do colégio ao cair da tarde, foi preso. Encostou-a no muro de um terreno baldio, cheio de matagal. A moça gritou e, por sorte, um guarda que passava pelo local chegou a tempo prendendo tio Rodolfo em flagrante. Duas semanas depois do início da pena foi morto no vestiário do presídio; o legista relatou que fora penetrado várias vezes de forma brutal. Dizem que seu espírito obcecado por domínio sexual ronda o casarão. Nunca dei crédito às superstições. Um escândalo que deixou marcas. Meus avós sofreram muito.

As pessoas cochichavam: olha lá! A família do tarado...

Meu pai morreu na guerra, tinha um ano, só o conheço de retratos. Vovó teve Alzheimer após vovô morrer baleado. Pouco tempo depois suas irmãs foram encontradas duras, mortinhas da silva, no chão do banheiro. Velório duplo. Como eram bem idosas, e minha avó já estava doente, não foram muito choradas.

Mas vovô não, era resistente, pessoa ativa, por isso o choque de vovó, coitada, e da família. Certa manhã ele voltava da padaria, houve um tiroteio num botequim, dois homens brigavam e um deles, o marido, tirou uma faca de trás do balcão, o outro sacou um revolver e descarregou. O da faca, suposto corno, morreu com dois tiros no peito e caiu com a faca ainda na mão. O outro fugiu correndo, sumiu. Por ironia, o corno caiu sobre a faca, decepando o pênis. Uma bala perdida acertou a cabeça de Antero, vovô, que morreu instantaneamente e na calçada ficou; o sangue saindo da cabeça escorrendo até o meio-fio, descendo pela sarjeta e penetrando no bueiro; o saco de papel com os pães na mão sobre o cimento. Vovó ainda lúcida, desesperada, abraçava-se chorando ao morto; quando o pessoal da funerária chegou foi difícil removê-lo pro rabecão. Então ela murchou; que tristeza! Ficava só, no quarto, aí veio a doença. Melhor pra ela, parou de sofrer, morreu três anos depois, na cama. Mais alguns anos os tios casaram indo morar com as esposas; tenho seis primos. Moram em outras cidades. Quando nos reunimos são gerações, gerações e mais gerações... Deus! Como nos reproduzimos! Mamãe agora com quase noventa foi pro oriente, quarenta anos atrás na onda hippie, após a morte de vovó, e lá ficou; vive numa comunidade. Tenho três irmãs: Isabela, Carla Maria e Maria Inês. Outro bocado de anos duas irmãs casaram e mudaram-se. Inês ainda ficou um bom tempo, ajudando a cuidar do casarão, mas há quinze anos foi morar com Nancy, na casa desta. No momento está só, é dona de um comercio de autopeças, mora num quarto nos fundos da loja. Tenho três sobrinhos, todos de tia Carla, tia Isabela até hoje não teve filhos. De vez em quando vêem me visitar, é bom revê-las, lembrar histórias do passado. Entre tio Rodolfo ser assassinado e Inês mudar-se, trinta e seis anos se passaram, eu tinha então quarenta e cinco; quando vi, dezoito anos atrás, estava só.

No começo foi estranho, mas com o tempo acostumei, as coisas foram acontecendo aos poucos. Uma casa como esta, tão grande, só pra mim; exagero! No térreo tem sala de bom tamanho com dois ambientes ligados por uma porta à sacada com balaústres que dá pra rua. Ao lado, o lavabo, a sala de jantar e, na parte de trás, as dependências da cozinha e área de serviço. No andar superior são cinco quartos e dois banheiros no fundo do corredor. Para completar, o sótão. Neste ficam coisas antigas, tábuas, caibros, brinquedos enferrujados, bonecas quebradas, coisas que não servem pra nada além de acumular poeira e teias de aranha.

Como a casa tem espaço e de muito não preciso, há cerca de cinco anos, cansado de viver sozinho, a pensão mal cobrindo os gastos mensais, passei a alugar dois quartos a pessoas de família, contrato assinado, firma reconhecida. Com esta pequena renda somada à aposentadoria me mantenho. Assim, administro o imóvel, zelando pela conservação do casarão. Dedico o tempo livre a ler jornais e assistir futebol pela tevê. Um dos quartos está alugado a um moço, Aurélio, de quarenta e poucos anos, músico, toca violão, dá aulas particulares e faz uns shows aqui e ali, tem uma banda. Com o tempo nos tornamos amigos, em muitas noites foi boa companhia, contando casos e rolos com as mulheres que teve, shows e histórias da vida, ótimo papo. A outra inquilina, Marisa, entrou recentemente, cinco meses atrás no lugar de um engenheiro de empresa estatal. É mulher madura, faz trabalhos em cerâmica. Simpática, me atraiu logo que a vi. Aurélio, o músico, é fluido na conversa, bom pagador, tranquilo, não tem namorada fixa, está cada dia com uma. Mulherengo! Nunca fui assim. Tive relacionamentos, alguns até bem agradáveis duraram mais que a média. No entanto, não encontrei mulher que me interessasse ou suportasse o suficiente. Por isso nunca casei.

Com o tempo fui ficando solitário.

Mas isto foi até uma semana atrás, ao Marisa chegar embriagada sexta-feira à noite. Entretanto, a primeira vez que nos aproximamos foi um pouco antes, cerca de um mês, noite de terrível temporal. O barulho das trovoadas assustava! Ribombavam por toda casa. Encontrei-a aflita no corredor, perto da porta do quarto, mãos protegendo ouvidos. Não tenha medo, digo, me aproximando, ela tira rapidamente as mãos do rosto, envergonhada. Desculpe-me, diz, e noto um tremor no canto dos lábios. Logo um novo rugido ecoa pelo casarão. As paredes e os janelões de madeira parecem frágeis ante a violência da ventania. As luzes piscam várias vezes enquanto novas trovoadas preenchem o ambiente de horror. As iluminâncias dos relâmpagos, sombras fantasmagóricas, fazem com que nos acheguemos. Nos abraçamos enquanto raios e trovões repartem o céu negro da tempestade. Sinto então, surpreso, o calor do corpo, seios fartos, cheiro doce; tenho uma ereção. Pouco depois a tormenta diminui seguindo os ventos. Nós, no entanto, continuamos abraçados até que Aurélio aparece de repente nos surpreendendo naquele abraço apertado. Com licença, vou dar uma mijada, diz, piscando o olho pra mim, andando em direção ao fundo. Marisa se desvencilha de meus braços, embaraçada e, sem dizer palavra, entra no quarto e fecha a porta na minha cara.

Porem, o real motivo desta história não é Marisa nem seus seios de fêmea gostosa apertados no meu peito, nem sua bunda de melão, nem Aurélio e suas mijadas, namoradas ou aulas de violão. Não, não é de nada disso que se trata. O que me afetou não foi nem mesmo a barata que semana passada saiu do armário de mantimentos, grande marrom brilhante cascuda, ziguezagueando pra lá e pra cá, assustando; fazendo-me pular dum lado pro outro fugindo de seu caminho desnorteado. Não, não foi tampouco a barata do jovem Gregor Samsa, aliás, o jovem baratão. Mas foi algo do gênero dos insetos. Tentarei ser mais objetivo.

O primeiro sinal do que estava por vir surgiu no dia seguinte à sexta-feira passada em que Marisa chegou tarde, um tanto embriagada e, ao subir as escadas desequilibrou, soltou um berro, quase caiu. Saí correndo do quarto e segurei-a pelo braço a tempo de evitar a queda. Estava bem alta; agarrou-me e começou a beijar com gosto de vinho misturado a frutos do mar, mas que importa? Mergulhei de cabeça naquelas águas quentes. Fomos pro quarto o que foi de vovó e depois do engenheiro nos largamos na cama e nos amamos loucamente. Vi-me apaixonado. Foram muitas trepadas intercaladas com lanches e banhos; ao final da manhã seguinte estávamos extenuados. Um ar de torpor nos invadiu, não nos mexíamos. Exaustos, depois de tanta sacanagem, deitados de barriga pra cima olhando o teto. Era sábado por volta do meio-dia.

Foi então que vi.

No canto esquerdo do teto alto, entre a corrente do lustre e a janela. Apoiada numa fresta entre as tábuas do forro, uma vasta teia de aranha, rosa com manchas pretas; contendo saquinhos de insetos mumificados envoltos em finíssimos e resistentes fios, sua despensa. O que me causou mais espanto é que a casa é faxinada toda semana, por duas mulheres às quintas-feiras, trazem material apropriado, vassouras de cabos encaixáveis que ficam compridas; além de faxinar tudo, vidraças, quartos e dependências, limpam os forros. Final da manhã de sábado...tempo curto, reflito, para uma teia deste tamanho...? Hum... Muito estranho...

Marisa dorme com o corpo descoberto, as nádegas deixam ver os contornos da vagina cabeluda. Se não estivesse exausto dava outra. A visão é por demais bela. O pau roxo de tanto esfregar ameaça crescer, mas a dor na virilha é forte, dói o abdômen. Desperta, olha-me e sorri. Pergunto sobre a aranha. Diz brincando: é de estimação, se chama Shirley. Como?! pergunto. Ora, qual é o assombro? Você gosta de ler jornais e ver jogos dia e noite, gosto da aranha, e daí? ela come insetos e mosquitos, me faz um grande favor.

Mal começamos a relação e já está botando as manguinhas de fora! espaçosa... É..., digo, olhando as belas pernas, realmente não tem nada demais. Eu, hem! Onde já se viu? Que mulher doida. Shirley!?

Dois dias depois, desfrutando da intimidade adquirida, usando como pretexto um jornal, entro no quarto dela mostrando uma reportagem que diz: “excesso de álcool faz a bunda diminuir”; ao ouvir isto ela solta uma gargalhada e exclama: Que babaquice! Fico puto com a risada de deboche e então, ao levantar o rosto num gesto de contrariedade, tipo olhando pro céu sacudindo a cabeça, não acredito no que vejo! A teia está três vezes maior!, quase metade do lado esquerdo do forro! Que merda é essa! grito. Calma! ela responde, Shirley teve filhotes à noite e precisa de espaço, é só isso; homens!, não entendem nada de maternidade! Tento argumentar que é feio, perigoso, mas uma levantada de saia intencional, a visão da boceta cabeluda a pouco mais de um metro é muito forte, esqueço o que falava e parto pra cima. Saio de lá no meio da noite, tudo escuro, a presença das aranhas ali em cima incomodando, vou dormir no meu quarto.

Ao amanhecer do dia subo até o sótão para buscar uma haste pra juntar à vassoura decidido a retirar as teias do quarto dela. Não esperarei até quinta feira, dia das moças da faxina; pressinto que há algo estranho com estas aranhas, não vou facilitar. Afinal, sou proprietário do imóvel; devo zelar pelo bom estado do mesmo. Ela que me desculpe, a teia vai sumir! Que arrume outro bichinho de estimação, e de pelúcia, porque se tem coisa que me deixa puto é animal dentro de casa. Aquela catinga no ar! Eca!

A velha porta tem um gancho de metal no lugar da maçaneta. Fica no centro do corredor, para acessá-la só com a escada guardada atrás da porta, num dos banheiros. Ao abrir, só escuridão no interior. Como já fizera tantas vezes quando criança engatinho pelo meio das velharias guardadas, encostadas às paredes laterais pra deixar a passagem livre até a janelinha. Faz tempo que não subo aqui. A lâmpada do teto há anos se quebrou e, por esquecimento, nunca foi trocada. Ao penetrar no recinto sombrio um frio corre meu corpo. Quantas vezes na infância subi aqui para brincar, me esconder, revirar as coisas com curiosidade? As primeiras masturbadas, sonhando com os peitinhos em flor de Lola a filha da empregada que o tio finado pegou. Quase sessenta anos depois cá estou, no aposento largo, profundo, de baixa altura, um metro e setenta, se tanto. Engatinho para abrir a janela no outro extremo, pois sei que em alguns pontos coisas compridas trespassam o caminho; é perigoso andar sem ver nada nesta escuridão abafada, cheirando a mofo e poeira. Assim que entro, sinto algo pegajoso se prendendo no rosto e no braço. Com a mão puxo pro lado a matéria fina e grudenta. Sinto mais medo que quando menino. Isto nunca acontecera! Mais adentro e nova cortina de teias gruda em partes do corpo. Argh! Que nojo! A coisa cola na face e nos braços, um volume incrivelmente espesso. Já meio desesperado, afobado, engatinho acelerado, corro até a janelinha. Muitas teias se emaranham em mim. Finalmente alcanço a janela e abro. Que susto terrível! Verifico que o local parcialmente iluminado está tomado por teias. Tenho pavor de aranhas! Suo frio. Mal se vê o que lá está, é um entrelaçado de fios, paredes de teias. Enfio a mão nelas e pego um pedaço de um velho cavalo de pau, brinquedo antigo, e com ele abro caminho entre a cortina de teias. Consigo destruir boa parte delas. Saio dali o mais rápido possível, quase em pânico e desço correndo a escada. No banheiro, ao olhar no espelho noto horrorizado a quantidade de teias e aranhazinhas grudadas ao redor dos olhos, cabelos e pescoço. Tiro-as com a mão e jogo na privada dando a descarga; satisfeito ao vê-las sumir no fundo da latrina. Entro debaixo do chuveiro e abro a torneira ao máximo. Pelo corpo descem teias e insetinhos nojentos, róseos com manchinhas pretas, balançando as perninhas, levados pela água quente que escorre pelo ralo. Só então, já mais calmo, pego o sabonete e esfrego no corpo, lavo bem o rosto, nuca, cabelos e braços. Uau!

Que porra de susto fodido!

Relaxo inspirando o ar e solto todo o nervosismo acumulado. Levanto o rosto pra lavar o pescoço e sinto um calafrio passando pela espinha, pois avisto no canto do forro do banheiro outra grande teia! com três aranhas enormes. Jogo água nelas! com força, mas o forro é muito alto; destruo parcialmente suas armadilhas. Enfurecidas, elas sobem e descem em velocidade refazendo as teias. Enxugo-me correndo, me visto e saio. Penso nervoso: ”Preciso acabar com essa praga! As moças da limpeza não estão vendo isso!?”

Corro até o quarto de Marisa para falar sobre o ocorrido no sótão e no banheiro, mas ao entrar fico ainda mais chocado! Apavorado! Estupefato! Quase não a vejo! Com dificuldade percebo que está nua, deitada na cama e, sobre seu corpo, dezenas de aranhas tecem teias, encasulando-a. Meu coração bate tanto que quase salta fora do peito! Entre a porta do quarto e a cama muitas teias formam uma camada espessa, cheia delas se movendo pelos fios com incrível agilidade, me impedindo de alcançá-la. Ela, por detrás das teias parece alheia a tudo, pois dorme ou está sedada, não reage. Quase entro em pânico outra vez, não sei o que fazer! A sensação de impotência é terrível! Preciso buscar socorro, sozinho não consigo. Aurélio sempre acorda tarde, decerto está dormindo, me ajudará! Preciso salvá-la! Corro ao quarto dele, exasperado!, na esperança de obter sua ajuda, mas qual o quê! O músico também está desacordado, mas com uma pequena diferença: sentado. Aranhas tecem ao seu redor uma teia justa e densa. Parecem centenas de trabalhadores terminando uma grande obra, às pressas, ao ponto de, nestes pouco instantes vê-las perplexo terminar o encasulamento e içá-lo para o alto. Em poucos minutos lá está ele, inconsciente, pendurado, encapsulado.

Percebendo a gravidade da situação cogito em correr até o quintal e pegar uma enxada ou tesourão para arrebentar as teias malditas. Mas quando me aproximo da escada, o coração, pobrezinho, por pouco não para e caio fulminado num enfarte! Que visão medonha! Por toda escada e a sua volta centenas, talvez milhares de aranhas, algumas enormes, do tamanho de uma caranguejeira, tecem teias fechando completamente a passagem! Corro para o meu quarto, lá tenho revolver no armário, telefone. Noto, ao correr, que no corredor já surgiram dezenas de teias grandes e longas, cheias de aranhas que rapidamente tomam conta do local. É um assombro! Tento ainda raciocinar, quase histérico: pego o telefone na cabeceira e ligo pra defesa civil! Isso! Alcanço a porta do aposento, arrastando comigo fios de teia e algumas aranhas. Passo a mão pelo corpo num gesto irritado. No quarto, porem, a situação é ainda pior!: não vê-se cama nem armário, só aranhas, milhares, tudo cheio de teias ao redor! Sinto por um momento que vou desmaiar; mas não!, busco forças não sei de onde, reajo! Não me entrego! Sem alternativa, com todas passagens bloqueadas, ataco! Lanço-me como louco em cima do manto grosso cinzento e pegajoso que a tudo cobre, me debato irado com elas, desesperado, mas quanto mais luto mais me emaranho; até que sinto uma picada no pescoço, tento levantar o braço e a mão, mas estes já não se mexem. O veneno logo me entorpece, os olhos se fecham, deixo-me cair. No entanto, não caio. As teias são fortes, mantêm a carcaça erguida. Estranho..., percebo, estou numa espécie de transe, mas continuo pensando e sentindo o corpo, é a ação do veneno, concluo. Mais alguns minutos e também sou içado, encasulado. Preso, pendurado no forro alto.

Acho que alguns dias se passaram; ou foram horas? Incrível como ouço e sinto, mas não me movo. Que horror! Escuto um vozear no térreo: manhã de quinta-feira, as moças da faxina! Falam coisas alarmadas. Ouço quando gritam: ”Doutor! Doutor!” Torço pra que venham me salvar!, que chamem os bombeiros! Sei lá! Qualquer coisa... tento gritar, mas não, não abro a boca. Quero, mas não consigo. O veneno tem este poder. Chamam por Marisa e Aurélio que tampouco respondem. Ouço a porta bater e sei que saíram. Com certeza apavoradas ante a visão da sala infestada de aranhas; devem ter achado que era coisa de assombração e não voltaram com os bombeiros, pelo menos até agora. Será que chegarão a tempo?!, se é que virão...

Posso sentir pelas vibrações quando as aranhas maiores, que comandam o batalhão, se aproximam de mim. No que imagino ser o dia seguinte, sinto o cheiro de Marisa nas patas de uma delas que me observa de perto; embora de olhos fechados, posso senti-la me olhando com seus oito olhinhos brilhantes. Apreciando o futuro prato. As quelíceras cheiram a sangue misturado ao odor da mulher que amei três dias atrás, provavelmente a última. Isso me faz sentir um começo de ereção. Mas o terror da situação é apavorante e logo a sensação de prazer esvaece. Não sei quando, exatamente, irão me devorar, conjeturo; sinto que o tempo está passando e comigo nada. Acho que estão me guardando, não sei pra quê.

Sinto uma calma incoerente. Como raciocino neste estado? Só posso atribuir ao efeito do veneno.

Sou como as coisas velhas no sótão? Não!, estou na despensa. Isso! Elas me guardam pra comer, se alimentarão de mim. Sei disto porque comecei a entender o que os artrópodes falam. Estão comendo Aurélio, só lhe devoraram dois terços, portanto, sobra ainda a cabeça e parte do tronco; ossos elas não comem. Estará consciente também? O resto foi ingerido pelas hostes de aranhas esfomeadas que, aos milhares, tomaram conta do casarão. De Marisa nem isso, nada lhe sobrou. Só o esqueleto seco, encasulado.

Estão esperando; por algum motivo sou o último. Uma deferência por ser o ex-dono do casarão? Talvez sejam estes meus últimos pensamentos. Já me comeram alguma parte? Digo isso porque horas atrás, ao lembrar de Marisa, quis sentir algo e nada, nada senti.

Ouço-as falando, estão gemendo!, fodendo e gritando de prazer, copulando sem parar!; são muitas, um bacanal! Deus! Como são promíscuos estes seres!

Serão as vibrações do finado tio Rodolfo?

Quando enfim pararem com a sacanagem, exauridas e famintas, será que virão a mim?

Terminar a refeição, as novas donas do casarão?



2 comentários:

  1. Alexandre,

    Que conto Kafkniano...
    Realidade e ficção assombrando a gente
    paragrafo por paragrafo, até o final aterrorizante.
    Nossa! Que folego esse teu!
    bjs
    Doroni

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  2. Muito obrigado, Doroni.
    É um prazer receber sua visita, seu elogio e palavras carinhosas.

    Abraços, volte sempre.

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